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3 perguntas para Laura Cohen Rabelo sobre Duas línguas

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Três perguntas para Laura Cohen Rabelo sobre Duas línguas
por Nina Schipper

Logo início do romance, diante de uma fotografia de si mesmo tirada em Londres havia trinta anos, um violinista de renome internacional chamado B de repente é fisgado pelas memórias desse tempo. Elas se impõem e B. as enfrenta. Daí em diante, a rememoração se dá num fluxo de consciência, que se desenrola em um parágrafo em que o passado é vivificado e se interpenetra no presente da narrativa, com seus vazios, dúvidas, sucessos e fracassos.

1.
O romance lida o tempo todo com a relação espaço x tempo, sendo que nessa relação, o tempo parece ter mais preponderância e uma elasticidade maior. Por exemplo, quando B reflete que Londres, 1989, era “um lugar inacessível no espaço justamente por ser um lugar no tempo”. Para falar de tempo, por que a escolha de um músico, um violonista, como personagem que rememora? Esse B que diz que “a música tem a ver com o tempo, não com o espaço”, que “música é tempo”, e que “o meio-termo ideal seria andar allegro quando estivessem com tempo, e vivace se estivessem atrasados”.

Eu acabo sempre escrevendo sobre música – é ela que me leva a escrever. Quase tudo que eu escrevo surgiu durante um concerto, durante uma escuta repetida, imagens e personagens nascendo daquilo que ouvia. De alguma forma, acho que minha escrita é uma tentativa de devolver à música o que ela me dá, uma emoção, uma forma de dizer para o que não tem palavras no início. B é violonista só porque escutei muito violão. O repertório do violão, sua história, seu desenvolvimento são assuntos que me interessam muito, assuntos dos quais o livro trata. O violão é um instrumento excluído, não faz parte de orquestras, não ocupa grandes salas de concerto assim como o piano, entretanto é o instrumento que temos em casa, que escutamos alguém da família tocar quando crianças, ao que temos acesso. Quando, ainda jovem, descobri que o violão tinha um repertório clássico magnífico, eu me apaixonei: como algo tão pequeno pode ser tão versátil, produzir tantos sons? Então acho que escrevi esse romance como uma carta de amor ao instrumento, como a Zain colocou lindamente no colofão do livro.

O tempo também é um dos meus assuntos favoritos. Lembro o Laocoonte de Lessing, em que ele define que a poesia são sons no tempo e a pintura são imagens no espaço – fico pensando que música e literatura se encontram nesse fator tempo, nesse fator de narrativa, então por isso os personagens músicos, não só em Duas línguas, mas em outros dos meus livros. Acho impossível pensar um músico que não tenha uma ligação com o tempo, e acho que a música às vezes é mais feliz em falar do tempo do que a literatura.

2.
Ainda sobre o tempo, mas agora o tempo muito peculiar da memória, penso em uma frase de Sandra, quando fala de B mas parece enunciar uma metáfora daquele que enfrenta a memória como um escafandrista: “Você é o escafandrista. Você mergulha nas coisas e fica lá durante o tempo que seu oxigênio aguenta. Depois, você precisa sair do fundo da água, senão você morre.” Você poderia comentar por que a memória neste romance assola o personagem de forma tão imperiosa, por que é tão urgente a ponto de se interpenetrar no presente da narrativa?

A natureza da memória é imperiosa. Alguém pode tentar não se lembrar de alguma coisa e se lembra. Quando comecei a escrever Duas línguas, eu não estava intencionando escrever sobre a memória, mas queria outras coisas. Em primeiro lugar, eu queria escrever um homem bom. No meu último livro, Caruncho, há um personagem que é um homem muito vil e ressentido, e eu terminei a escrita contaminada por esses maus sentimentos. Eu queria, dessa vez, escrever um homem que expusesse sua fragilidade, e essa fragilidade foi surgindo através da memória. Existia também um interesse de técnica narrativa também: como narrar dois tempos simultâneos? Enchi a cara de fluxos de consciência: Virgínia Woolf, Thomas Bernhard, eu queria muito aprender com eles. O livro é minha resposta a esse exercício. Gosto muito de pensar que às vezes a gente pode escrever só para testar um recurso e dá certo.

Há um terceiro motivo para ter entrado na floresta da memória: esse livro foi composto através da memória de terceiros. Durante a pandemia, eu tinha decidido que eu ia escrever apenas o que eu quisesse, mesmo que fosse uma coisa inútil. Comecei a transcrever o programa da rádio Violão com Fábio Zanon, que passava na rádio cultura, só porque eu gostava muito da linguagem utilizada pelo Fábio nos áudios. Depois, transcrevi muitos áudios de amigos e professores, que foram me contando histórias de acordo com o que eu perguntava a eles. Por exemplo, perguntei ao professor Carlos Palombini como foi viver em Londres nos anos 90 e ao Luciano Morais, grande amigo violonista, da história do violão dele. O livro é cheio de palavras dos outros, memórias dos outros, e minhas histórias ali no meio, escondidinhas. Foi assim que construí B.

3.
Por último, já nas páginas finais, tendo sobrevivido ao trabalho da memória, tendo mergulhado no passado com seus mistérios, dúvidas e ambivalências – e voltado à tona –, surge a constatação de que é “Impossível passar pelo crescimento sem desastres”. Associo essa frase a outro trecho do livro: “De súbito, o violão de B parecia ter desenvolvido uma complexidade de timbre, além de dar respostas mais claras, muito mais elaboradas, e tudo parecia soar mais harmônico, como se as cordas se comunicassem melhor entre si, sem perder suas características próprias. Certo, o luthier diria que aquele era um efeito comum: rachaduras reparadas podiam dar mais estabilidade ao instrumento.” Para um B obcecado com o esquecimento, com a ruína, parece que a descoberta de que é possível reparar rachaduras instaura harmonia. Você poderia comentar essas ideias?

Nina, você me pegou de surpresa com essa questão. Interessante, porque escrevendo eu não tinha pensado na relação das rachaduras do violão com as rachaduras do próprio B. Parece que na literatura as metáforas se constroem sozinhas, sem que a gente intencione, e agora parece óbvio. Escrevendo, eu enxergava esse violão como um outro de B, mas pelo que parece um músico e seu instrumento podem mesmo ter uma relação de duplo: onde eu começo e onde termina meu instrumento? Como escritora, muitas vezes penso nisso: onde eu começo e onde termina minha escrita? Somos uma só? Se eu ficar sem escrever, ainda sou uma escritora?
Duas línguas é o romance de formação de um músico. Fala de seu crescimento, de seus traumas, e seu instrumento, um Abreu, dos melhores violões do Brasil, também vai passando por esse caminho de maturidade (como acontece com os bons violões). Achei essa uma colocação incrível da sua parte e tem tudo a ver com uma coisinha que eu ando escrevendo agora. Seria a terceira história sobre violão que escrevo (escrevi antes sobre o instrumento no meu romance Canção sem palavras de 2017). Nessa história, um homem ou uma mulher (ainda não me decidi) vai até a casa abandonada de seu antigo professor, morto há anos, buscar um violão que, dizem, foi abandonado lá. Ainda não sei o que ele vai encontrar.

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