Resenha
Culturadoria – 09/02/2024
por Gabriel Pinheiro
“Senti cheiro de floresta”, nos diz o narrador Tomura, logo na abertura do romance “Floresta de lã e aço”. Ele sente a presença de uma floresta durante o outono, momentos antes de escurecer, como àquela próxima ao vilarejo onde nasceu e cresceu. Em poucas frases, Tomura constrói uma imagem forte deste ambiente multissensorial. “Mas não havia nenhuma floresta por perto”, o jovem conclui. Em sua frente, havia apenas um piano. Um grande piano de cauda preto. “Floresta de lã e aço” é o primeiro romance da escritora japonesa Natsu Miyashita publicado no Brasil. Com tradução de Eunice Suenaga, o livro é um lançamento da Editora Zain.
O trabalho do afinador: entre o dom e o trabalho árduo
O encontro com o piano e o seu afinador, o sr. Itadori, alteram significativamente o curso de vida do jovem estudante de 17 anos. “Não sabia se gostava ou não. Pela primeira vez na vida tinha prestado atenção num piano”. O fascínio imediato, tanto pelo imponente instrumento quanto pelo ofício do afinador, levam o jovem Tomura, ao concluir o ensino médio, à uma escola especializada neste ofício. Se a formação começa na instituição de ensino, Tomura percebe que o trabalho do afinador é uma arte em perene desenvolvimento, quando retorna, como funcionário, à mesma loja onde o sr. Itadori trabalha.
“Você não pode ter pressa. Tem que ir passo a passo, com persistência. (…) No nosso trabalho, não existe certo ou errado”.
“Floresta de lã e aço” busca no simples – na observação do cotidiano de seu narrador – a profundidade dos sentimentos profundamente humanos. Tomura é um personagem em processo de desenvolvimento: profissional, mas, principalmente, pessoal. Numa escrita marcadamente poética, Natsu Miyashita lida com os medos e os anseios, os conflitos internos e a disputa com aquele sabotador que cada pessoa parece carregar dentro de si, em maior ou menor medida, em uma espécie de romance de formação atento e delicado.
Uma floresta sensorial e musical
A imagem da floresta tem uma forte recorrência ao longo do romance, este terreno que, ainda que em certa medida familiar para o narrador, é repleta de mistérios e de possibilidades, um espaço onde é possível tanto se perder quanto encontrar a si mesmo. É para esse ambiente que o som, o toque, o cheiro da madeira do piano transportam o protagonista. A partir dela, uma série de imagens e metáforas, que parecem instigar diferentes sentidos no leitor, são evocadas pela sensível prosa de Miyashita.
“Como o piano produzia essas sonoridades? As folhas viraram árvore, a árvore, uma floresta, e a floresta, uma montanha. Ali, eu via as notas se transformarem em som, e o som, em música. Percebi então que eu não passava de uma criança perdida em busca do divino. Não havia me dado conta antes que estava perdido. Em busca do divino ou simplesmente de um caminho? Mas me encontrei, pois o que buscava era aquele som”.
Calmo e contemplativo – características que me fascinam cada vez mais na literatura japonesa – “Floresta de lã e aço” é um olhar inusitado e surpreendente para o ofício do afinador de piano, uma verdadeira forma de arte, dedicada e minuciosa, tão importante quanto o próprio ato de tocar aquele instrumento. Natsu Miyashita costura todo o romance com detalhes acerca deste trabalho. Sabe um daqueles livros que, terminada a leitura, você sente ter aprendido algo novo? Pois então. Numa jornada em busca da perfeição, talvez esteja justamente naquelas pequenas imperfeições aquilo o que nos diferencia, o que nos torna únicos.
Gabriel Pinheiro é jornalista e produtor cultural. Escreve sobre literatura aqui no Culturadoria e também em seu Instagram: @tgpgabriel