I

Assis Brasil
©Carol Brenck
Resenhas

Como foi o drama existencial do pai e mentor de Mozart após sucesso do filho.

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Resenha

Valor (Porto Alegre) – 15/10/2023
por Paula Sperb

Um excelente romance, no conteúdo e na forma, é “Leopold: Uma novela”, obra mais recente do gaúcho Luiz Antonio de Assis Brasil. Nele, o autor alcança uma naturalidade praticamente impensável – dada a dificuldade da tarefa – na expressão oral de seu narrador. Assis Brasil não comete deslizes ao enfrentar o desafio imposto pela escolha de sua voz narrativa.

O escritor optou por um narrador em primeira pessoa, do século XVIII, falante nativo do alemão austríaco. Trata-se de Leopold Mozart (1719-1787), pai de Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), compositor incontornável da história da música e, justamente por isso, frequentemente o protagonista.

A obra é refinada, sim, mas que isso não seja confundido com artificialismos. As escolhas lexicais tampouco são o ápice da construção ficcional do escritor. Pelo contrário. O manejo de uma gramática estrangeira marcada pelo seu tempo, transposta para o ato de criação contemporâneo, serve como instrumento – e não como objetivo – para tudo aquilo que Assis Brasil opera no romance.

Todavia, não são esses, necessariamente, os motivos que fazem de “Leopold” um livro que merece ser lido. Essas são qualidades que permeiam todas as páginas e que, se foram certamente trabalhosas para o escritor, fazem com que o leitor possa aproveitar a história com fluidez.

“Leopold” é um grande romance sobretudo pela profunda humanidade que Assis Brasil conseguiu imprimir em uma figura à sombra do talento do filho. O romance conta o drama de um personagem fundamental na formação pessoal e educação musical de um dos maiores gênios da história das artes sem cair na tentação de clichês de crianças-prodígio.

Se a plena realização do filho como músico era a grande razão da vida de Leopold, parece inevitável que uma crise existencial seja instaurada quando o propósito é atingido. São justamente os elementos que compõem tal crise que o escritor maneja ao longo da obra.

É voltando de uma viagem para Viena, onde encontrou um bem-sucedido e independente Mozart, que Leopold revisa seu papel de pai e mentor de um gênio. Dentro de uma sacolejante diligência que agora retorna a Salzburgo, Leopold escolhe como interlocutores de seu monólogo interno um casal que viaja dormindo. Porém, não se engane. O casal, na verdade, somos os leitores que escutamos tal história sem pegar no sono.

A narração é orgânica, brota de um homem que era iluminista e católico, portanto contraditório em certa medida. Da sua voz escutamos raciocínios eloquentes e também xingamentos como “vômito do demônio”, “peido do diabo”, expressões que dão graça a um personagem comedido publicamente.

Leopold era um músico reconhecido, autor de um celebrado manual de aprendizado de violino. Ao autografar um exemplar para uma amiga, assina a dedicatória como Mozart. Ao que ela responde: “Escreva Leopold Mozart, Mozart agora é como chamam seu filho”. Tal passagem é uma entre as que indicam que o pai vai, pouco a pouco, separando-se do filho, um tema que normalmente é mais explorado literariamente nas relações maternas.

A consciência da magnitude do filho é como que simultânea à ideia de missão cumprida e, logo, crise existencial. Em outro momento, Joseph Haydn é recebido na casa da família em Salzburgo, onde assiste à interpretação de uma composição do jovem Mozart. “Seu filho é o maior compositor que eu conheço”, garante Haydn. A afirmação desconcerta Leopold: “Eu não sabia onde incluir a grandiosa sentença de Haydn no meu organizado mundo interior, e era aquele choro abafado de uma criança, e o súbito e irremediável vazio que só vim a entender quando me veio à garganta uma terrível pergunta, a primeira vez que eu dizia, E agora, o que faço da minha vida?”.

Cabe ressaltar que Assis Brasil foi violoncelista da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, uma das mais tradicionais do país. Ele é íntimo, portanto, do tema musical que já apareceu em outros livros. A emoção estética causada pela descrição de harmonias, dissonâncias e movimentos alcançam também a sensibilidade dos leigos. Mesmo sendo uma ficção, a obra é resultado de um intenso trabalho de pesquisa, com a leitura de centenas de cartas da família.

“Tive gestos de maníaco: contei os 437 passos que ligam a Residenz à primeira morada dos Mozart na Getreidegase, gravei o exato timbre dos sinos da Nova Residenz, fiz soar minha voz em igrejas vazias, andei no meio da neve, vencendo os caminhos lúgubres do Cemitério de São Sebastião, onde está o túmulo de Leopold”, explica Assis Brasil, no “Posfácio para ser lido antes”, sobre seu retorno às paisagens que já lhe eram familiares.

“Leopold” é um livro também para ser escutado. Lançado pela Zain, editora nova no mercado com foco em música e literatura, o romance possui uma playlist com as obras de Mozart mencionadas por página. A última página orienta: “O livro termina aqui, mas a história dos Mozart continua; soa e ressoa em seus leitores-ouvintes”.

Leopold Luiz Antonio de Assis Brasil. Zain, 296 págs., R$ 74,90

Paula Sperb é doutora em letras pela UCS, com pós-doutorado em letras pela UFRGS

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