Resenha
Jornal Zero Hora (Porto Alegre) – 06/01/2024
por Maria Carpi
Querido escritor Luiz Antonio de Assis Brasil,
Quando desembarquei da diligência que levava Frau e Herr Schläfer, deparei com tua caminhada pessoal, escrita passo a passo no posfácio, com Mozart, filho de Leopold, e vieram-me à mente Cecília Meireles e Aldyr Garcia Schlee. Ambos deixaram que o personagem tomasse corpo em suas entranhas antes de escrever. Cecília Meireles esteve em Minas Gerais, como repórter, para cobrir um evento da Páscoa de Ouro Preto, e começou, como Joana D’Darc, a ouvir as vozes da Inconfidência, retornando ao Rio de Janeiro. Essa gestação durou quatro anos até a escrita de Romanceiro da Inconfidência (1953). Do mesmo modo, ouvi do próprio Schlee ter pesquisado e meditada por 10 anos os passos do personagem-título antes de escrever o portentoso Don Frutos (2010).
Sim, amigo, Leopold e seu prodígio musical quiseram primeiro se albergar em tuas entranhas de escritor antes de estarem presentes no lugar da fala e da linguagem. E então, a partir da sugestão profética de Valesca, tua memória emotiva evoca, desde tua infância, todos os que escutavam – e te deram a conhecer – Mozart. Tua mãe ao piano e teu pai com o ouvido atento às ondas do rádio, transmitindo Mozart desde o Teatro Colón, de Buenos Aires. E o menino Luiz Antonio foi músico antes de ser escritor. Há uma pauta musical nas linhas em que escreveu todos os seus livros.
Depois, maduro em sua paixão por Mozart, escritor sempre meticuloso e grande articulador dos detalhes, nos ajudas a percorrer as ruas que ele andou desde menino, sentindo-lhe a respiração e o suor a escorrer da testa. E prossegues na caminhada, ouvindo o pequeno prodígio, agora amparado pelo pai Leopold, de cidade em cidade, de país a país, dedilhando os instrumentos musicais, compasso a compasso da música com que o gênio inaugurava o universo.
Mas é de grande importância que a tua narrativa gira ao contrário da “fama ambígua” de muitas interpretações de Leopold, uma figura autoritária que teria se apropriado do talento do filho para suprir suas despesas econômicas e ganhar notoriedade às custas de um prodígio alheio. No solilóquio da diligência com o casal Schläfer adormecido, tudo foi registrado ao contrário de outros exegetas dessa paternidade que ora recuperas o valor. Sim, Leopold, além de talentoso músico e escritor, não foi, como pensam alguns, egoísta e oportunista, mas zeloso em difundir sua música aos coetâneos e ao mundo. Ao contrário do pai de Kafka, que nem sequer vislumbrou o gênio do filho, à medida que o menino crescia, Leopold mais se empenha em propagar e fortalecer o seu vigor musical, e pouco a pouco se retira, para só lembrarmos da música de Mozart. Ele bem sabia que o menino a seus cuidados nunca deixaria de ser uma criança iluminada e sempre latejava em sua mente a sentença de Haydn ao afirmar que ele seria “o maior compositor de todos os compositores”. Agora, Leopold e o escritor se conjugam. E levantam, palavra por palavra, o “si bemol” de Wolfgang Amadeus Mozart, desde os quatro anos até quando adulto, participava dos concertos em Viena.
Sim, amigo escritor, teu livro tem o mérito de tirar do esquecimento um personagem chamado Leopold Mozart. Como tiraste do esquecimento Jacobina Maurer, desde o Morro do Ferrabrás, em Videiras de Cristal (1990), e, desde a Itália, Sandro Lanari, em O Pintor de Retratos (2001), mais a singela música do século 19 no Pampa, em Concerto Campestre (1997). Interpretas a vida passada de personagens, fazendo-os renascer em quem tem o privilégio de ler teus livros. E o grande mérito de toda a escrita é justamente trazer à memória coisas passadas e coisas por vir da criação literária.
Na prodigiosa vocação de músico da linguagem, com tua batuta, vais regendo a orquestra da Oficina de Criação Criativa da PUCRS, de onde emergem autores consagrados. Não te contentas em ser exímio escritor, mas queres que outros ingressem na vocação de sermos, novamente, o Povo do Livro. E, ao final da escrita, alcanças o máximo zelo ao agradecer a várias pessoas pela tua caminhada em nos apresentar, em carne e osso, Leopold e seu filho Mozart. Ora, grande escritor Luiz Antonio de Assis Brasil, nós todos temos de agradecer por mais esta grande obra de tua autoria.
Maria Carpi é poeta, professora e defensora pública aposentada, autora de “A Esperança contra a Esperança”.